sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Então é Natal!




A voz de Simone invadiu meu quarto numa manhã de domingo. Neste momento ouço a pergunta que dá início a música,“Então é natal e o que você fez...”. A frase começa a ecoar em minha mente tornando inevitável a reflexão.Confesso que já chorei ao ouvir esta canção, porque em poucos minutos ela instiga a memória, e começamos a avaliar os nossos erros e acertos no ano que está findando.
Cara Simone, fiz tanta coisa durante este ano. Há algum tempo eu diria que não fui uma garotinha excelente. Em 2017, caí e ralei o joelho, tropecei e o tornozelo saiu do lugar, assim como o coração que ficou ralado, dolorido, e por muitas vezes em pleno estado de felicidade.
Trilhei novos caminhos, voltei a alguns lugares para plantar sementes e um dia ei de regressar para saber se minha árvore foi frutífera. Corri dos relâmpagos, enfrentei ventanias, brinquei nos dias ensolarados e com os pingos d’água criei poesia; com o vento sonhei, com os dias frios rabisquei histórias.
Chorei! E não foram poucas as lágrimas. Elas caíram quando a palavra me feriu, quando o medo me assustou, ou nas despedidas que a vida promove. O choro veio da inquietação, da dor dos ansiosos, e a sensibilidade de uma canceriana com ascendente em libra.
Na virada do ano prometi que lutaria para ser uma pessoa melhor e não sei se fui um ser que fez algo de bom na vida de alguém, mas eu tentei ser gente que deixa lembranças, que tenta ser o diferencial no dia de alguém. É difícil agradar, e eu sempre optei por ser fiel aos meus ensinamentos, pois não comungo com a ideia de ter que agradar a todos. Sempre digo que não tenho vocação para rosa, sou um mandacaru, que floresce vez ou outra.
Entristeci ao ler e assistir noticiários. O ódio se expandiu! Massacres continuam assolando o continente africano, a sensação é de impotência ao perceber que  o fato de milhares de negros terem sidos mortos é considerado algo“normal”. Por todos os lados intolerância, racismo e preconceito se fazem presentes. Quantas mulheres assassinadas, quantas crianças morreram de fome, quantos pais choraram a dor pela morte de um filho, quantos filhos se juntam aos pais e choram a dor da miséria.
2017 tem sido um ano pesado. Das crises hídricas ao caos urbano. Sair de casa com o medo na alma, ninguém prevê o que te espera na próxima esquina. O medo e a insegurança fizeram parte da rotina de um monte de gente.
Centenas de políticos desonestos fizeram com que as pessoas perdessem suas esperanças em política clara, honesta e voltada para os menos favorecidos. Os brasileiros adormeceram quando era o momento do país acordar, das vozes clamarem por justiça, um silêncio surreal se estabeleceu no país.
            Não sei se os bons ainda são maioria neste mundo, mas creio que da bondade surgem estradas floridas, e quanta gente bondosa eu encontrei por onde andei. Pessoas com alma que cheira a jasmim, algumas criaturas do sorriso largo e de abraços tranquilizantes. Tanta gente que alegrou-me com um afago ou com aquele ânimo que regozijava um dos meus dias. Novos conhecidos, velhos amores e doces encontros. Sempre precisamos de pessoas que nos ajudem a sermos melhores.
            Saudades ficaram e as lições também. Dois mil e dezessete me pegou pela mão. Pôs-me a ficar sentada olhando o pôr-do-sol e contemplando a natureza, outrora, impulsionou-me a sair do meu mundinho e garimpar caminhos. A cada viagem, um aprendizado.
            É Natal mais uma vez, da festa cristã a dor da exclusão. Mesas fartas e outras vazias, o peru na mesa do rico, um punhado de feijão na mesa do pobre. Crianças ricas contabilizando seus presentes e as carentes arquivando mais um sonho que não foi realizado. Famílias felizes celebram a ceia, e idosos choram pelos asilos, mais um natal sem o aconchego do lar. Falta alguém naquela casa, e a festa jamais será completa, porque alguém cumpriu sua jornada e se foi; mendigos farão pedidos a estrela guia, e será natal outra vez.
Respondendo a pergunta que Simone faz em sua música, eu fiz muita coisa, estou aprendendo com os dias, ainda desejo ser uma boa menina, quero ter leveza e ser alguém com bons sentimentos. Desejo que minha cidade evolua, e que os políticos daqui pensem mais nos que tanto mendigam uma cesta básica, um exame, rede de esgoto e respeito.
O ano está quase terminando, e grata sou a ele por cada queda, pois mesmo com arranhões me reergui. Muita coragem para enfrentar a vida e sorrisos para celebrar as conquistas.

Suerlange Ferraz

sábado, 25 de novembro de 2017

O mundo ansioso de Laura




            


         

            Esticada  em uma cama, olhos arregalados, pingos d'água batem no teto, gatos fazem maratona sobre o telhado, e o tic-tac ao lado da cama registra que já se passa das 3 da manhã. É mais um dia em que a insônia rouba o sono de Laura.
             A dona insônia é causada devido às crises de ansiedade. Há anos ambas acompanham a vida de Laurinha. Agitada, acredita que o dia tem poucas horas para realizar tudo o que ela tem a fazer. Sua vida é recheada de adrenalina, mas, por tantas vezes, o seu coração é sufocado por taquicardia, seus pés e mãos viram pequenos icebergs; em seu estômago, as borboletas fazem  danças em ciclos.
   E o presente?  Raramente ele é vivenciado, porque  o senhor futuro chega e se apossa do seu cérebro.  A ansiedade faz com que seu ombro doa e sua respiração fique tensa. Durante o dia, nos pequenos olhos de Laura, é visível o cansaço e a tristeza de uma noite mal dormida. A falta de sono a deixa mal-humorada e irritada. 
   Para muitos a ansiedade é frescura, mas para quem sofre com tal problema, é  doído. Imaginem um coração disparado na velocidade em que um  atleta participa de  uma corrida. Pensou? O coração do ansioso vive assim, no ritmo de uma escola de samba.
            O tempo, tão conjugado no futuro, os medos tão presentes, a agonia dilaceradora e poucos abraços para acolhê-la. Quando o peso recai sobre seus ombros a mocinha desaba em lágrimas e, às vezes, para afagar a alma ela toma um chá quentinho.
 Seu quarto é o refúgio. Na cama, pensa no tempo. De vez em quando seu cachorrinho aparece na porta e resolve fazer-lhe companhia. Ele sabe afagar sua dona.
            Laura perdeu a conta de quantas vezes sentiu que estava incomodando uma reunião familiar, ou entre amigos. Sente-se como uma sobra no meio de uma multidão. 
       Quando o dia faz um convite para apreciar o pôr do sol, Laura costuma pedalar. O vento em seu rosto a deixa feliz. O contato com o mar também a acalma. É como se nas águas ela deixasse um pouco dos excessos da vida.
 Ser ansioso  em um mundo com preconceitos é sofrido. Laura sente que seu problema é visto com indiferença por algumas pessoas. Mal sabem elas que a irritação com pequenos ruídos, ou os ataques de pânico, não é uma questão de escolha. Acontece!
Laura, querida! Amanheceres mais felizes ão de chegar. O sono que fugiu de ti há de retornar, e a leveza preencherá o coração angustiado. Sua cabeça que é conectada com o mundo e pouco para pra descansar, e a insônia que rouba suas energias, um dia se aposentarão, e você sorrirá e viverá cantarolando pelos caminhos do povoado de Ioiô.

Suerlange Ferraz

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Tempos das águas




Quando cai uma gota d’água no chão, o sertanejo faz festa. Durante duas quartas-feiras choveu em Poções. A formação da chuva, o cheiro de terra molhada, a escuridão do céu e a agitação do povo é sinal que a qualquer momento as águas se desprenderão do céu e lavará as ruas da cidade.
A chuva devolve a alegria ao homem do campo. É hora das formigas de asas fazerem visitas às casas, e de tanques, rios e barragens encherem. Época para abrir as covas e fazer plantações. Os milhos já apareceram na feira, às hortaliças estão verdes e mais saborosas, as noites mais calmas, devido aos barulhos que a chuva faz ao cair sobre o telhado. O pé de seriguela do meu quintal está carregado, as frutinhas já estão crescidas e o verde das folhas se mistura com as pequeninas flores vermelhas. As romãs estão grandes. Pelo muro vejo a mangueira no quintal da vizinha, está atulhada e as mangas aparentam ficar enormes e suculentas.
Tão necessário é ter leveza na vida. As noites chuvosas, doces e adoráveis companhias de uma criatura que convive com a insônia e vê a vida passar ansiosamente, sempre me traz ensinamentos. Tenho aprendido que a felicidade é algo simples, ela pode estar presente em uma conversa na casa de uma amiga, acompanhada de um café e uma espiga de milho cozido; ou, na rua, vendo estrelas, abraçando a vida e trocando palavras com quem nos faz bem. Aliás, ela pode marcar presença em qualquer lugar em que o coração se sinta bem e aconchegado.
As águas limpam as ruas. É tempo de limpar o coração, o guarda-roupa, a casa e os pensamentos. Tempo de ser leve, de entender que excesso de vestimentas não é sinônimo de felicidade. Momento de desintoxicar o coração, este lugarzinho por onde passa diversos sentimentos e têm dias que ele pesa e dói. Para alguns escritores ele até sangra quando está sofrendo. A cabecinha também necessita de cuidados, ela que gira igual à roda gigante, precisa de manutenção para funcionar direito.
A chuva me acalma igual às canções de Oswaldo Montenegro. Ela me nina e faz com que eu durma tranquilamente. Traz alegria para a vegetação. Veja o quão transformadora ela é! Em questão de dias o que eram galhos secos sai de cena, dando espaço para plantas verdinhas e estradas floridas. As lavadoras de roupa entoam seus cantos próximo aos pequenos rios, e os pássaros dançam no céu.
É tempo das águas, tempo de retirar os excessos e purificar a alma, tempo de se alegrar com o pingo d’água igual ao homem do campo e, se possível, brincar embaixo da chuva ou olhar as águas correndo na rua através da janela. Se por ventura faltar luz, acenda uma vela. Coloque-a na sala, sente-se no sofá ao lado da família e proseie.
Coisa mágica é a chuva! Alegra o pobre e o rico, promove reflexões, causa preocupações aos mais carentes e reúne a família. Momento em que a percepção dos sentidos é aguçada e atitudes simples como olhar para o céu, sentir o vento bagunçar o cabelo e a água molhar o rosto acabam se tornando as sensações mais gostosas que alguém pode sentir. 
Suerlange Ferraz

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Lala: mais uma empoderada no mundo







Em um pequeno vilarejo baiano vive Lala. Uma mulher negra, cabelo esvoaçantes, dona de uma oratória que transmite convicção e é mais uma sonhadora neste mundo. Com um pouco mais de trinta anos, ela não nega suas origens e sempre diz que os caminhos queriam que ela fosse submissa, mais uma semianalfabeta, porém as correntezas da vida a levou aonde muitos negros ainda lutam e outros já desistiram de estar, os caminhos da universidade.
Desde pequena, seus pais se esforçavam para que ela estudasse. Oriunda de escolas públicas, encarava os estudos com seriedade. Sofreu humilhações que é comum pobres e negros sofrerem neste mundo. Chorou, brincou, cresceu e muitos de seus sonhos infantis ainda estão dentro dela. A menina que se tornou mulher sempre acreditou que os sonhos jamais poderão morrer, pois, eles alimentam a alma.
Lala, não entendia o porquê de ser uma das poucas negras na turma e muito menos, quando Manuel, menino magrelo e negro, foi acusado de ter roubado uma caixa de lápis de cor que continha seis unidades de Louise. Era de causar estranheza, tudo que sumia na escola, o culpado era Neco, apelido do menino. Ele negava as acusações, chorava e por muitas vezes ouvia que era da corzinha o extinto de roubar. O menino desistiu de estudar e os roubos continuaram até descobrir que o furtador era um garoto claro e que estudava em outra turma.
Cabelo esponja de aço, tifuti, rolo de fumo, saci pererê, macaco; se fosse filho de santo, era o macumbeiro, feiticeiro e todos tinham medo; se aparecesse algum colega com piolho, com certeza tinha vindo da cabeça de algum negrinho da escola; se sumisse algo na sala, era um neguinho o furtador. E assim, desde a infância, Lala, soube que há uma dolorosa desigualdade neste país. Para ela, nunca foi fácil ter acesso ao que há de melhor, e ainda carrega consigo os desafios de ser mulher e negra em uma sociedade elitista, desigual, racista, machista e em que, se contar a história de luta e sofrimento de um povo vítima de escravidão, humilhação, dor e entre outras coisas é tido como vitimismo ou um tal de mimimi.
Lala, diferentemente de muitas colegas negras, conseguiu bolsa em um cursinho pré-vestibular, dava aula de reforço para conseguir alguns trocadinhos no final do mês e estudou muito. Foi aprovada em seu segundo vestibular, ingressou em uma universidade e passou quase cinco anos saboreando conhecimentos e poucos como ela, mulher e negra, ocupavam um espaço acadêmico, mas ela seguia seus caminhos, sempre com sede em beber de novas fontes e de ser mais uma Maria a conquistar um espacinho porque ela não veio ao mundo para pregar vitimismo, ela é empoderada e sabe que o seu lugar é onde ela deseja estar, mesmo quando racistas dizem que não, ela e tantos negros, vão e fazem diferente.
Ocupar lugares, fazer com que a voz dos que foram silenciados pela opressão ecoe, levar conhecimentos e compartilhar a vida com seus alunos, embarcar em viagens, escrever novas estórias a cada dia, se tornar exemplo para a aluna que sempre desejou assumir  o cabelo crespo. Lala continua sabendo que é a minoria nos espaços em que frequenta, que seu estilo não é considerado padrão de beleza para muitos, que o racismo é massacrante e ela ainda sente as dores do preconceito. Já riram de seu cabelo, ela escuta que cotas raciais comprova a inferioridade do negro e que os mesmos são sensacionais – na cozinha ou no samba, mas quem profere isso com tamanha maledicência, não sabe, ou melhor, não quer assumir que o negro é sensacional em qualquer cargo que ocupe.
Apesar de viver em um mundo cruel, com oportunidades para poucos e dor para muitos.  Um lugar em que se classifica o valor das pessoas através do padrão financeiro e étnico, Lala é mais uma mulher guerreira que mostra a cada amanhecer que não veio para ser coadjuvante de uma história, ela sabe quem é, de onde veio e assim, como seus irmãos negros, deseja que as oportunidades sejam iguais e principalmente, que o respeito impere. Ela não vive esse tal de vitimismo, gosta de sambar, de viajar e não foge de uma discussão porque entende que diante de tamanha exclusão, intolerância, machismo – não se deve calar.

Suerlange Ferraz