quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A voz do gaivota



Era sagrado sair com as amigas na sexta a noite e raramente aos sábados. Os nossos points eram os bancos que ficam próximos à barraca de acarajé ou as escadas do Banco do Brasil. Comíamos pipocas e inúmeros assuntos eram discutidos por ali. Não tínhamos tanta preocupação com assaltos até porque naquele período, Poções era terra sossegada.

Nossos encontros tinham trilhas sonoras fornecida pela Voz do Gaivota. Legião Urbana, Biquíni Cavadão, Skank, alguns sambas das antigas, músicas da Jovem Guarda embalavam nossas conversas. Perdi a conta das vezes que eu ficava um tempão imaginando a fisionomia de Eduardo e Mônica (Legião), ou da emoção que sentia e ainda sinto que chega a derrubar lágrimas dos meus olhos ao escutar Vento no Litoral. A música tem um poder de mexer com o sentimento e de transportarmo-nos para um mundo imaginário.

A voz do gaivota também tinha trilha sonora para meu sofrimento no dia de ir ao laboratório para fazer "exame de sangue". Era um tortura que começava por volta das 5h00 quando eu era acordada por minha mãe. Ela puxava minha coberta e me dava pressa, eu levantava chorando e com a sensação de que todo meu sangue seria retirado do meu corpo e a certeza de que não sobreviveria a horas sem que um farelo de pão caísse em meu estômago que gritava por um alimento.

Aos prantos e lá estava eu a caminho do laboratório. Ao passar pela praça do Divino, ouvia aquele hino do Senhor do Bonfim e a vontade de chorar aumentava. A melodia do hino soa forte e a parte que diz "glória a ti nesse dia de glória" me fazia acreditar que meu sofrimento ao ser espetada por uma agulha poderia terminar rapidamente e minha glória seria desfrutar dos danoninhos que ficaram à minha espera.

Às 18h00 é o momento da Ave Maria e assim como eu, muitas pessoas ao escutarem a música mariana fazem o sinal da cruz sobre o corpo. É o momento que a fé impera pelo centro da cidade.

Todos os sábados eu vou a feira e às vezes escuto um toque fúnebre, paro um pouquinho e espero o locutor anunciar quem faleceu, pode ser algum conhecido. Confesso que algumas vezes eu me assustei ao ouvir a música que antecede a nota de pesar.

Quando o cortejo com o corpo da minha avó seguia em direção ao cemitério da saudade, a Voz do Gaivota tocava as músicas cujo o refrão são " Segura na mão de Deus e vai" e "Senhor, quem entrará no santuário para te louvar?". Sem dúvida, esse dia foi o que a música estraçalhou meu coração e durante dias fiquei analisando o significado das canções tocadas naquela triste manhã de agosto.

Às vezes, passo pela praça a noite e não consigo imaginá-la sem a presença desse patrimônio que é a Voz do Gaivota. Creio que as canções tocadas nessa rádio já embalaram namoros, os encontros as escondidas, os passeios noturnos e amenizou o fardo no findar de um dia. A melodia e os sentimentos, as palavras cantadas retratam o íntimo de cada um de nós. É aquela recordação que vem com trilha e é tocada para uma plateia que por tantos momentos passa apressadamente diante daquelas caixas de som distribuídas pela praça.

Espero dezembro chegar para reencontrar os amigos na praça, comer pipoca, rir, prosear, ouvir e emocionar ao som da Voz.

Suerlange Ferraz

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

A fé nossa de cada dia!


Há quase dois anos, eu fui benzida por uma rezadeira super carismática da comunidade quilombola da Lagoa do João, ela foi responsável por fazer orações enquanto passava uns raminhos sobre mim e rezava suas ladainhas. Quando terminou aquele momento, me sentia mais leve.
Dona Maura é uma mulher cheia de fé e domina conhecimentos sobre o poder de cura de algumas ervas da região. Em nosso último encontro, ela dizia como a fé alimenta a pessoa e é benéfica para quem crer.
Existem crenças tão belas como a de Dona Maura e tem as crendices que levam inúmeras pessoas a acreditarem que a doutrina religiosa que segue é superior ao do próximo. Uma crença doentil e que tem vitimizado muitos seres.
É comum aparecer criaturas portadoras de plena convicção de que os participantes de uma religião diferente a sua está condenado ao inferno. Um monte de intolerantes espalhados por aí. É essa intolerância somada a outros fatores que adoece a sociedade.
O intolerante tem um olhar limitado ao mundo do outro, enxerga males nos diversos seguimentos religiosos. É tão estúpido questionar a fé de alguém. Se tem fé independente de frequentar ou não uma religião. Quem tem fé deve respeitar as escolhas do outro.
Tudo que é diferente aos nossos olhos causa estranheza. Normal! O que não deveria causar é ódio. Tem dias que paro e fico tentando entender o que causa intolerância e nunca acho respostas convictas. Tenho repúdio aos discursos vazios e preconceituosos de algumas pessoas quando se referem às religiões de matrizes africanas ou ao espiritismo. Em Poções existem seres dotados de santidade que amaldiçoam os filhos de santo e os espíritas e ainda usam a bíblia para condenar a fé alheia. Qual é o sentido de condenar a fé ou seguimento religioso de alguém? O que a religião do seu vizinho ou conhecido interfere em sua vida? A sua fé te induz a achar-se um ser diferenciado? Meus queridos, cuidado com a fé que cega e limita. Sinceramente, acredito que a intolerância assim como o racismo é uma doença e quem pratica necessita de um tratamento.
Que possamos viver uma fé linda e que nos conduza na melhoria do nosso ser. Ter fé para sermos tolerantes e respeitarmos a diversidade. Eu já não frequento uma religião, vou a uma novena, já fui ao centro espírita, passei por caruru em um terreiro, não perco uma Marcha do Dendê, amo ser benzida por alguma rezadeira/benzedeira, já fui a um ou dois cultos e recentemente tornei-me uma romeira. Eu tenho fé em tudo que me faz bem. Agradeço aos laboratórios vivos que eu frequentei e que me ensinam a conviver com a diversidade.
Tenho um amor pela festa do Divino, fiz desse amor um artigo monográfico e durante minhas pesquisas tive o prazer de conhecer muitos seres de fé. Pessoas simples que devotam ao titular de Poções (padroeiro) suas esperanças e agradecimentos. Muitos devotos seguiam outra religião, mas naquele momento se juntavam aos católicos para um momento de comunhão religiosa.
A fé nossa de cada dia é alimento pra alma. Não necessitamos compreender a crença de ninguém. O mundo carece de gente que plante o bem, de intolerantes já estamos fartos. Deixe os tambores dos filhos de santos ressoarem. Para de fazer cara feia para os espíritas e cuidado porque careta cria muita ruga e estraga a pele. Não faço vista grossa ao preconceito que alguns católicos e evangélicos sofrem. É lamentável assistir o ódio entre pessoas religiosas. Em 2015, durante a Marcha do Dendê a oração de uma senhora diante da Igreja Matriz, fez com que eu parasse para observar aquela cena tão linda. Uma filha de santo, com os braços abertos, fazendo suas reverencias diante de um símbolo católico. Fiquei encantada com aquele momento e desejei que aquele gesto fosse repetido por mais vezes, por mais pessoas e que o ódio que rouba a visão fosse substituído pela fé que encanta a alma.
Sua religião deve ter coisas belas a te ensinar. Tire a trava que limita seu enxergar e saiba que a fé brota de corações férteis e que buscam semear o bem. Por um mundo com boas energias e gente do bem. Que Deus, os bons espíritos, Oxalá, Buda, os anjos da Guarda, o Divino Espírito Santo ... nos proteja de todos os intolerantes. Amém!
Suerlange Ferraz