sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Bye, bye 2016


Ufa! Mais um ano se findando. Tenho a sensação de que o tempo tem corrido muito mais do que o normal, e ainda me lembro dos últimos minutos de 2015 e os primeiros instantes de 2016.
Creio que nenhum esotérico adivinhou que este ano seria tão tenso. Tragédias: aérea, terrestre e política - vivenciamos dias em que o povão continuou sendo colocado para escanteio, panelas bateram e quando era necessário que a voz da indignação ecoasse pelo país, o silencio tomou conta. Quando pensamos que todas as coisas negativas tinham acontecido, eis que surge algo para arrancar uma lágrima ou a tristeza de nós.
Neste país homofóbico, um senhor se preocupou em defender uma vítima que era espancada devido a sua orientação sexual e morreu. Seu Índio foi mais um brasileiro batalhador morto pela arrogância humana. O racismo e a intolerância religiosa continuaram fazendo vítimas e destruindo famílias. A violência rouba a paz de ir e vir tranquilamente pelas ruas das cidades. As tragédias no continente africano continuam invisíveis aos olhos do mundo. As guerras civis estão tirando do mapa cidades e pessoas. Ainda tem muita gente morrendo de fome, sede, dor e injustiça. Em 2016, muitos políticos escancararam suas facetas podres e perversas, fazendo questão de lembrar que o povo só serve para votar e nada mais. Um punhado de corruptos se reelegeram e outros tantos saíram ilesos de seus crimes.
Mas em meio a um ano conturbado, sempre teremos algum motivo para celebrar. Celebro a felicidade ao saber que existem pessoas que se preocupam com o próximo, que em vários lugares do país, os pais ensinam aos filhos que é necessário fazer o bem a alguém. Uma amiga me dizia hoje que ela ainda acredita que o bem é maioria porque se fosse o contrário, o mundo estaria pior. Somos essências deste planeta e devemos ser o melhor para alguém e para nós. Desejar boas energias, ser do bem e proliferar bons sentimentos ainda faz a diferença.
Mesmo sendo muito reclamona, mas nunca deixei de agradecer a vida pelas oportunidades de ter esbarrado em pessoas que me fizeram evoluir, me orientaram e mostraram de forma suave quão prazeroso é viver. Pude viajar e descobrir seres humanos tão belos e que não necessitam de tantos bens materiais para serem felizes. De todas as situações que enfrentamos, sempre é possível tirar um ensinamento.
Na virada do ano, vou fazer os mesmos pedidos que sempre faço há tanto tempo. Continuarei fazendo minha avaliação anual e fazendo planos para melhorar algumas coisinhas em mim e em minutos irei imaginar uma porção de coisas.
Cada um com sua superstição, crença e desejos e que possamos nos unir em orações ou pensamentos positivos em prol de um ano novo com muitos motivos para alegrarmos. Que possamos nos perdoar e perdoar os erros do próximo.
Que o amor seja o sentimento do momento, que a solidariedade e tolerância andem sempre ao nosso lado e possamos enfeitar o nosso interior com o melhor e mais simples da vida. Desejo a todos maturidade, boas energias, doçura, fé, bondade e um ano cheio de encantos e que a voz dos justos jamais se calem. À todos, feliz ano novo!
Su Ferraz

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A Espera do Natal




Para quem acha que cabelos cacheados não necessitam de cuidados, lamento informar, mas você está completamente enganado. Têm dias que os cachos estão super revolucionários e querem ocupar mais espaço do que o normal. Quando isso acontece tenho que ir ao salão, e meu cabelo estava em um desses dias de rebeldia, por isso tive necessidade de fazer uma visita a minha cabeleireira.
O salão de beleza é um espaço propício a reencontros, conversas, atualizações dos últimos acontecimentos na cidade. É um lugar em que pessoas são apresentadas àquelas que até então eram desconhecidas e muitas estórias surgem por ali.
De todas as pessoas que já vi naquele salão, uma senhora, creio que era uma cliente novata, chamou a minha atenção. Enquanto eu tomava um cafezinho e esperava a vez de ser atendida, a mulher que aparentava ter em torno dos seus quarenta anos, tirou o lenço laranja que cobria o cabelo e dizia desejar que ele fosse liso. O cabelo dela era crespo e ela o achava feio.
Uma cliente ressaltava a beleza dos cachos e tentava convencer a senhora a deixar o cabelo natural, mas dona Ana era irredutível e queria a escovinha. Era a primeira vez que ela passaria por este procedimento na vida e pensava que ao escovar os cabelos,seus fios sofreriam uma transformação e ficariam lisos para sempre. Ao ser avisada que este milagre não aconteceria, ela foi consultar o esposo que pensava igual a sua companheira. Foi um esforço para a cabeleireira explicar como seria o procedimento que iria realizar, e depois de muita conversa a escovinha começou a ser feita.
Essa senhora dizia que queria se arrumar para esperar uma filha que mora há oito anos em São Paulo e durante este período visitou a mãe apenas uma vez. Esta mulher tem sinais de sofrimento na face e era nítida a vergonha que sentia de seu próprio cabelo. Ainda existem pessoas que associam beleza aos cabelos lisos.
Dona Ana arrumou a casa e deseja estar bonita para receber sua filha. Uma jovem de dezenove anos e que há oito trabalha como empregada doméstica, ou como babá. Uma moça que não vivenciou a infância e juventude, porque tinha que trabalhar para prover seu sustento.
Analisando a conversa da senhora com outras clientes, fiquei pensando em quantas mães estão perfumando a casa e se arrumando para receber seus filhos. Muitas mãinhas são dominadas pelos padrões impostos pela sociedade que as fazem se acharem feias por não terem um cabelo liso. Quantas mãezonas estão tristes em seus quartos, nos asilos, recordando natais lindos que vivenciaram com suas famílias, e hoje a alegria foi substituída por uma tristeza que machuca demasiadamente.
O Natal é antecedido por rituais de preparação. Prepara-se o espírito, uma tinta para dar vida às paredes da casa, enfeites espalhados, estoque de gostosuras nos armários, lista de presentes, amigo oculto, nostalgias, entre outras coisas. Nunca fui fã dessa festa que está tão, tão, tão capitalista. Olhe a exclusão que existe; mesas super fartas e outras tantas o vazio toma conta. E nesses tempos de crise, fartura é uma palavra que não fará parte do Natal de muitos.
Fizeram do Natal a festa do ter. As crianças repletas de roupas e brinquedos precisam ter o último lançamento tecnológico do momento e passaram o ano, ou melhor, alguns meses, porque enjoaram rapidamente de seus brinquedos, isolados do universo, mexendo em joguinhos. Quantas crianças apáticas por aí, quantos pais que querem amenizar a ausência com presentes caros. E a cada novo ano uma geração de crianças tristes e fúteis vai surgindo. Uma geração de egoístas também.
Dona Ana escovou seu cabelo para ficar arrumada e esperar sua filha. Dona Dite, não tem esperança que um de seus seis filhos apareça no asilo para visitá-la e não faz questão de escovar o cabelo. Dona Guida, chora há meses porque seu filho foi assassinado e ela carrega a dor de não receber mais um abraço de Tonzinho, seu menino que um dia saiu de casa com uns colegas e nunca mais voltou.
Dona Ana tinha pouco dinheiro para se produzir e ficar bonitona para recepcionar a filha na rodoviária. Ela é mais uma mãe que passou muitos natais sozinha, e este ano, a festa será diferente. Não sei se sua mesa estará farta no dia 25, mas captei que seu coração está em festa porque uma parte de si estará ao seu lado.
Para cada pessoa o Natal tem uma essência. Eu não sou fã desta festa e tenho inúmeros motivos que não abordarei por aqui. Uma parcela enorme da humanidade está enfrentando problemas sérios. Tantas crianças esperam por uma migalha de pão e outras estão dando seu último suspiro neste instante. Quantas pessoas desejam ter um almoço decente, uma roupa limpa que possa ser usada. Quantos pais estão tristes, pois não tem dinheiro para colocar o básico na mesa e tenho certeza que muitos deles devem estar chorando, porque desejaram ter condição de comprar um presente para seus filhos e infelizmente não deu.
Que no dia do Natal, possamos florir a vida de alguém. Não somente nesta data, mas em qualquer dia, ajude alguém que necessita de um abraço, sorriso, colo, uma comida, roupa, esteja disposto a colaborar com a felicidade dessas pessoas que não conhecemos, mas que estão subjugados em cada canto da cidade, a fome, ao calor, a chuva, ao isolamento e a miséria.
Naquela tarde, dona Ana que não sabia o que era uma escovinha e que não gostou do que sua colega de salão disse, ao afirmar que cabelo cacheado era bonito, me fez pensar, repensar e questionar sobre os estereótipos e os efeitos da “magia” do Natal sobre as pessoas. Espero que ela e sua filha possam ter bons momentos juntas, e um dia, entenda que não é necessário esconder seus cabelos crespos dentro de lenços, porque a beleza consiste na autoaceitação e valorização de como e quem somos.

Suerlange Ferraz

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Os malucos beleza de Poções





“Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real Controlando A minha maluquez
Misturada Com minha lucidez
Vou ficar
Ficar com certeza Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza Maluco beleza” (Raul Seixas)

Poções é habitada por muitas pessoas especiais que alegram a população com seus gestos e atitudes. Alguns tem o mistério como sobrenome, tornam-se atração por onde passam e fazem parte da memória dessa cidade. Quando criança ouvia muitas histórias sobre Paulina. Soube de sua existência porque minha mãe dizia o tempo todo que eu ficaria igual a Paulina, porque gostava de guardar muitos papéis em casa. As histórias dessa célebre moradora são famosas na cidade.
Os considerados loucos, problemáticos ou “malucos beleza”, carregam consigo uma bagagem repleta de histórias, alguns, creio eu, preferiram “esquecer o passado”, outros são livros ambulantes pelas ruas de Poções. Essas pessoas foram exclusas da sociedade e viviam ou vivem a mendigar um trocado, alimentos e um pouco de atenção. São indivíduos que ficaram invisíveis perante a sociedade, pois sua presença causa medo ou desconforto para os que os cercam.
Cada maluco beleza traz consigo histórias que não podem ser esquecidas. É preciso guardar as memórias dessa parcela da população que nos alegrou em diversos momentos, em outros, também nos assustou com o jeito de ser, de olhar ou falar. Cada um de nós tem um pouco de maluco beleza. Temos loucuras ocultas ou tão expressas em nossas faces. Sonhamos, às vezes conversamos sozinhos, fazemos alguém rir, temos lembranças, amores, família e uma vida que pode ser exemplo de encanto. Cada maluco beleza que por aqui passou, deixou recordações, talvez partiram sem saber da importância que tinham na cidade e continuam guardados na memória de muita gente.
Deveria existir alguma forma destes queridos malucos beleza serem homenageados pelas autoridades, ou que em projetos escolares, os alunos pudessem ter a oportunidade de conhecê-los. Em uma conversa com um amigo, Roberto Sampaio, ele teve a ideia de que algumas ruas da cidade fossem batizadas com os nomes de alguns “doidos” que se tornaram fontes históricas da cidade.
Dos malucos que eu conheci, destaco alguns que marcaram minha vida. Tico, o rezador, figura extrovertida que ainda encontro quando estou indo para o trabalho. Silvana, já não vive mais em Poções; Chico da saia, um homem que passava pelas ruas da cidade pedindo comida e usava uma saia, peça fundamental para a sua caracterização; Dió, um senhor que remendava suas próprias roupas; Tino, criatura que anda muito, figura alegre e que não perde uma missa.


Tico, o rezador
Trajando uma calça, um paletó, chapéu, sapatos, uma capanga nas costas, sacolas nos bolsos e sempre carregando seus ramos, surge nas ruas de Poções, Tico, o benzedor. Figura alegre e emblemática, faz suas orações sobre as pessoas. O problema é que fala numa rapidez, que é até complicado entender. Puxa várias ladainhas, que segundo ele, tem o poder de curar. Não sei ao certo quantos anos essa figura possui, mas sei que desde pequena o encontrava pelas ruas da cidade. Sempre tive curiosidade para saber o que ele esconde dentro daquele punhado de sacolas que carrega consigo. É o rezador mais carismático que eu conheço,um ser que está presente na memória de muitas gerações.

Silvana
Silvana tinha seu lugar cativo nas missas dominicais, ás vezes chegava cedo, outrora chegava com certo atraso, mas sempre procurava sentar mo mesmo lugar, próximo ao ambão. Lembro das inúmeras vezes em que ela tentava atrapalhar a leitura do evangelho que era feita por seu João, diácono e padrinho dela, para pedi-lhe a benção. Quando alguém sentava em seu lugar, era choro e confusão garantidos. Silvana carregava um embornal com a liturgia diária, que ela sempre dizia que era presente do seu amado padrinho. Também gostava de carregar uma bíblia. Ela tinha um cabelo curto, ficava mexendo no nariz e toda semana fazia parte dos dizimistas aniversariantes. Faz pouco tempo que soube da sua partida para São Paulo.

Chico da saia
Estatura mediana, marcas do mau cuidado estampadas no rosto, passos curtos, emitia a frase “Ei, me dá uma coisa aí”. Gostava de vagar pelas ruas e feira da cidade, além de gostar de usar saias, por isso ficou conhecido como Chico da saia. Usava camisetas e tinha algumas saias coloridas, já o vi de vestido, e quantas vezes eu ficava pensando o porquê dele não usar calças como todos os homens que conhecia. Já tive medo dele. Algumas vezes ele esquecia do passo lento e o víamos andando pelas ruas a passos largos e rápidos.
Quando alguém ria dele, ficava muito nervoso e em alguns momentos até enfrentava os zombadores. Ficava longos períodos sem passar pela rua onde moro, e quando achava que ele tinha sumido, eis que surge dando sacudidas no portão, ou gritando na janela. Chico era uma figura misteriosa que deixou saudades e muitas lembranças com sua partida.

Dió
Já era costume eu sair da missa a noite, dar uma volta pela praça, sentar no banco com uns amigos, ouvir as músicas da Voz do Gaivota, comer pipoca e atualizar os últimos fatos ocorridos na cidade. Ali, pela praça mesmo, via um senhor que ficava sempre nas portas das lojas ou em alguns momentos passava com um saco nas costas atravessando a rua. Nunca o vi pedindo esmolas. Tinha a roupa toda remendada e ele mesmo costurava as suas vestimentas. Dormia sempre em frente a uma daquelas casas comerciais e com um olhar distante acompanhava o movimento da cidade. Era Dió, um idoso que usava uma botina furada e tinha o céu como o teto da sua casa.

Neném
Negro, estatura média e uma voz marcante, na feira, na porta de alguns supermercados e nas missas. Neném adorava entoar seus cantos e soltar o vozeirão quando o silêncio tentava se fazer presente entre os fiéis. Homem de sorriso fácil, conhecia os hits do momento e foi acometido pelo vício do álcool. Viveu a vagar pelas ruas. Maluco beleza, que fez do canto (mesmo nas horas indevidas) sua arma para prender a atenção das pessoas.
Faz alguns meses que ele faleceu e seu canto deve estar ecoando em alguma dimensão deste vasto planeta.

Camarão
Baixo, pele clara, barbudinho, trabalha nas oficinas da vida, adora frequentar as missas e conversa gesticulando. Lembro-me que faz umas danças estranhas que diverte as pessoas. Abre os braços e com os punhos fechados balançao corpo de um lado para o outro. Sempre quer apertar as mãos de todos que estão na missa..

Tino
Negro, de estatura mediana, passos acelerados, gosta de conversar, mas pouco podemos entender. Sempre aparece na igreja, seja durante as missas ou enquanto ela se encontrar aberta. Adora uma camiseta do Flamengo e sempre distribui flores na igreja, nos deixando pensativos sobre como e onde encontra tantas.
Quando eu frequentava as missas, admirava o gesto nobre dele em levar uma moeda para ofertar, mas ele não entregava a moeda no momento do ofertório, sempre a deixava em cima do altar ou a confiava as mãos do sacerdote. Algumas pessoas sentiam medo de Tino, porque o mesmo gostava de apertaras mãos dos presentes durante o “abraço da paz” ou tentava abraçar, o que causava espanto ou temor.
Vejo que hoje Tino é uma figura marcante durante as missas. Admiro o carinho e educação com que o Monsenhor Carvalho lhe trata. Penso que os tidos como “doidos”, enxergam o mundo de uma forma mais simples e alegre do que os tais “normais”, pois quando querem um abraço é uma forma de expressar carinho ou pedir aconchego. Por tantas vezes o medo, o odor e o preconceito nos impede de sermos mais humanos, e condenamos essas pessoas a viverem na solidão eterna.


Suerlange Ferraz