quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Os malucos beleza de Poções





“Enquanto você
Se esforça pra ser
Um sujeito normal
E fazer tudo igual
Eu do meu lado
Aprendendo a ser louco
Um maluco total
Na loucura real Controlando A minha maluquez
Misturada Com minha lucidez
Vou ficar
Ficar com certeza Maluco beleza
Eu vou ficar
Ficar com certeza Maluco beleza” (Raul Seixas)

Poções é habitada por muitas pessoas especiais que alegram a população com seus gestos e atitudes. Alguns tem o mistério como sobrenome, tornam-se atração por onde passam e fazem parte da memória dessa cidade. Quando criança ouvia muitas histórias sobre Paulina. Soube de sua existência porque minha mãe dizia o tempo todo que eu ficaria igual a Paulina, porque gostava de guardar muitos papéis em casa. As histórias dessa célebre moradora são famosas na cidade.
Os considerados loucos, problemáticos ou “malucos beleza”, carregam consigo uma bagagem repleta de histórias, alguns, creio eu, preferiram “esquecer o passado”, outros são livros ambulantes pelas ruas de Poções. Essas pessoas foram exclusas da sociedade e viviam ou vivem a mendigar um trocado, alimentos e um pouco de atenção. São indivíduos que ficaram invisíveis perante a sociedade, pois sua presença causa medo ou desconforto para os que os cercam.
Cada maluco beleza traz consigo histórias que não podem ser esquecidas. É preciso guardar as memórias dessa parcela da população que nos alegrou em diversos momentos, em outros, também nos assustou com o jeito de ser, de olhar ou falar. Cada um de nós tem um pouco de maluco beleza. Temos loucuras ocultas ou tão expressas em nossas faces. Sonhamos, às vezes conversamos sozinhos, fazemos alguém rir, temos lembranças, amores, família e uma vida que pode ser exemplo de encanto. Cada maluco beleza que por aqui passou, deixou recordações, talvez partiram sem saber da importância que tinham na cidade e continuam guardados na memória de muita gente.
Deveria existir alguma forma destes queridos malucos beleza serem homenageados pelas autoridades, ou que em projetos escolares, os alunos pudessem ter a oportunidade de conhecê-los. Em uma conversa com um amigo, Roberto Sampaio, ele teve a ideia de que algumas ruas da cidade fossem batizadas com os nomes de alguns “doidos” que se tornaram fontes históricas da cidade.
Dos malucos que eu conheci, destaco alguns que marcaram minha vida. Tico, o rezador, figura extrovertida que ainda encontro quando estou indo para o trabalho. Silvana, já não vive mais em Poções; Chico da saia, um homem que passava pelas ruas da cidade pedindo comida e usava uma saia, peça fundamental para a sua caracterização; Dió, um senhor que remendava suas próprias roupas; Tino, criatura que anda muito, figura alegre e que não perde uma missa.


Tico, o rezador
Trajando uma calça, um paletó, chapéu, sapatos, uma capanga nas costas, sacolas nos bolsos e sempre carregando seus ramos, surge nas ruas de Poções, Tico, o benzedor. Figura alegre e emblemática, faz suas orações sobre as pessoas. O problema é que fala numa rapidez, que é até complicado entender. Puxa várias ladainhas, que segundo ele, tem o poder de curar. Não sei ao certo quantos anos essa figura possui, mas sei que desde pequena o encontrava pelas ruas da cidade. Sempre tive curiosidade para saber o que ele esconde dentro daquele punhado de sacolas que carrega consigo. É o rezador mais carismático que eu conheço,um ser que está presente na memória de muitas gerações.

Silvana
Silvana tinha seu lugar cativo nas missas dominicais, ás vezes chegava cedo, outrora chegava com certo atraso, mas sempre procurava sentar mo mesmo lugar, próximo ao ambão. Lembro das inúmeras vezes em que ela tentava atrapalhar a leitura do evangelho que era feita por seu João, diácono e padrinho dela, para pedi-lhe a benção. Quando alguém sentava em seu lugar, era choro e confusão garantidos. Silvana carregava um embornal com a liturgia diária, que ela sempre dizia que era presente do seu amado padrinho. Também gostava de carregar uma bíblia. Ela tinha um cabelo curto, ficava mexendo no nariz e toda semana fazia parte dos dizimistas aniversariantes. Faz pouco tempo que soube da sua partida para São Paulo.

Chico da saia
Estatura mediana, marcas do mau cuidado estampadas no rosto, passos curtos, emitia a frase “Ei, me dá uma coisa aí”. Gostava de vagar pelas ruas e feira da cidade, além de gostar de usar saias, por isso ficou conhecido como Chico da saia. Usava camisetas e tinha algumas saias coloridas, já o vi de vestido, e quantas vezes eu ficava pensando o porquê dele não usar calças como todos os homens que conhecia. Já tive medo dele. Algumas vezes ele esquecia do passo lento e o víamos andando pelas ruas a passos largos e rápidos.
Quando alguém ria dele, ficava muito nervoso e em alguns momentos até enfrentava os zombadores. Ficava longos períodos sem passar pela rua onde moro, e quando achava que ele tinha sumido, eis que surge dando sacudidas no portão, ou gritando na janela. Chico era uma figura misteriosa que deixou saudades e muitas lembranças com sua partida.

Dió
Já era costume eu sair da missa a noite, dar uma volta pela praça, sentar no banco com uns amigos, ouvir as músicas da Voz do Gaivota, comer pipoca e atualizar os últimos fatos ocorridos na cidade. Ali, pela praça mesmo, via um senhor que ficava sempre nas portas das lojas ou em alguns momentos passava com um saco nas costas atravessando a rua. Nunca o vi pedindo esmolas. Tinha a roupa toda remendada e ele mesmo costurava as suas vestimentas. Dormia sempre em frente a uma daquelas casas comerciais e com um olhar distante acompanhava o movimento da cidade. Era Dió, um idoso que usava uma botina furada e tinha o céu como o teto da sua casa.

Neném
Negro, estatura média e uma voz marcante, na feira, na porta de alguns supermercados e nas missas. Neném adorava entoar seus cantos e soltar o vozeirão quando o silêncio tentava se fazer presente entre os fiéis. Homem de sorriso fácil, conhecia os hits do momento e foi acometido pelo vício do álcool. Viveu a vagar pelas ruas. Maluco beleza, que fez do canto (mesmo nas horas indevidas) sua arma para prender a atenção das pessoas.
Faz alguns meses que ele faleceu e seu canto deve estar ecoando em alguma dimensão deste vasto planeta.

Camarão
Baixo, pele clara, barbudinho, trabalha nas oficinas da vida, adora frequentar as missas e conversa gesticulando. Lembro-me que faz umas danças estranhas que diverte as pessoas. Abre os braços e com os punhos fechados balançao corpo de um lado para o outro. Sempre quer apertar as mãos de todos que estão na missa..

Tino
Negro, de estatura mediana, passos acelerados, gosta de conversar, mas pouco podemos entender. Sempre aparece na igreja, seja durante as missas ou enquanto ela se encontrar aberta. Adora uma camiseta do Flamengo e sempre distribui flores na igreja, nos deixando pensativos sobre como e onde encontra tantas.
Quando eu frequentava as missas, admirava o gesto nobre dele em levar uma moeda para ofertar, mas ele não entregava a moeda no momento do ofertório, sempre a deixava em cima do altar ou a confiava as mãos do sacerdote. Algumas pessoas sentiam medo de Tino, porque o mesmo gostava de apertaras mãos dos presentes durante o “abraço da paz” ou tentava abraçar, o que causava espanto ou temor.
Vejo que hoje Tino é uma figura marcante durante as missas. Admiro o carinho e educação com que o Monsenhor Carvalho lhe trata. Penso que os tidos como “doidos”, enxergam o mundo de uma forma mais simples e alegre do que os tais “normais”, pois quando querem um abraço é uma forma de expressar carinho ou pedir aconchego. Por tantas vezes o medo, o odor e o preconceito nos impede de sermos mais humanos, e condenamos essas pessoas a viverem na solidão eterna.


Suerlange Ferraz

2 comentários:

  1. Obrigado por perceber a existência e homenagear essas pessoas figurinhas carimbadas de Poções. O meu preferido é Tino, ele mora na rua da frente.. tadinho não pode sair mais devido problemas de saúde.

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  2. Devemos ter um olhar mais humano aos menos favorecidos. Abraços

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